Desigrejados
Decepcionados com a Igreja Muitos são os cristãos abandonam o convívio
das igrejas locais e decidem exercer sua religiosidade em modelos alternativos.
Por Mauricio Zágari
A Igreja Evangélica brasileira
está cansada. E é um cansaço que vem provocando mudanças fortes de paradigmas
com relação aos modelos eclesiásticos tradicionais. Ele afeta milhões de
pessoas que se cansaram de promessas que não se cumprem, práticas bizarras
impostas de cima para baixo, estruturas hierárquicas que julgam imperfeitas ou
do mau exemplo e do desamor de líderes ou outros membros de suas congregações.
Dessa exaustão brotou um movimento que a cada dia se torna maior e mais
visível: o de cristãos que abandonam o convívio das igrejas locais e decidem
exercer sua religiosidade em modelos alternativos – ou, então, simplesmente
rejeitam qualquer estrutura congregacional e passam a viver um relacionamento
solitário com Deus. O termo ainda não existe no vernáculo, mas eles bem que
poderiam ser chamados de desigrejados.
No cerne desse fenômeno está um
sentimento-chave: decepção. Em geral, aqueles que abandonam os formatos
tradicionais ou que se exilam da convivência eclesiástica tomam tal decisão
movidos por um sentimento de decepção com algo ou alguém. Muitos se protegem
atrás da segurança dos computadores, em relacionamentos virtuais com
sacerdotes, conselheiros ou simples irmãos na fé que se tornam companheiros de
jornada. Há ainda os que se decepcionam com o modelo institucional e o
abandonam não por razões pessoais, mas ideológicas. Outros fogem de estruturas
hierárquicas que promovam a submissão a autoridades e buscam relações
descentralizadas, realizando cultos em casa ou em espaços alternativos.
A percepção de que as decepções
estão no coração do problema levou o professor e pastor Paulo Romeiro a
escrever Decepcionados com a graça (Mundo Cristão), livro onde avalia algumas
causas desse êxodo. Embora tenha usado como objeto de estudo uma denominação específica
– a Igreja Internacional da Graça de Deus –, a avaliação abrange um momento
delicado de todo o segmento evangélico. Para ele, o epicentro está na forma de
agir das igrejas, sobretudo as neopentecostais. “A linguagem dessas igrejas é
dirigida pelo marketing, que sabe que cliente satisfeito volta. Por isso,
muitas estão regendo suas práticas pelo mercado e buscam satisfazer o cliente”.
Romeiro, que é docente de
pós-graduação no Programa de Ciências da Religião da Universidade Mackenzie e
pastor da Igreja Cristã da Trindade, em São Paulo, observa que essas igrejas
não apresentam projetos de longo prazo. “Não se trata da morte, não se fala em
escatologia; o negócio é aqui e agora, é o imediatismo”. Segundo o estudioso, a membresia dessas
comunidades é, em grande parte, formada por gente desesperada, que busca ajuda
rápida para situações urgentes – uma doença, o desemprego, o filho drogado. “O
problema é que essa busca gera uma multidão de desiludidos, pessoas que fizeram
o sacrifício proposto pela igreja mas viram que nada do prometido lhes
aconteceu.”
Se a mentalidade de clientela
provocou um efeito colateral severo, a ética de mercado faz com que os fiéis
passem a rejeitar vínculos fortes com uma única igreja local, como aponta tese
acadêmica elaborada por Ricardo Bitun. Pastor da Igreja Manaim e doutor em
sociologia, ele usa um termo para designar esse tipo de religioso: é o
mochileiro da fé. “Percebemos pelas nossas pesquisas que muitas igrejas possuem
um corpo de fiéis flutuantes. Eles estão sempre de passagem; são errantes,
andam de um lugar para outro em busca das melhores opções”, explica. Essa
multiplicação das ofertas religiosas teria provocado um esvaziamento do senso
de pertencimento, com a formação de laços cada vez mais temporários e frágeis –
ao contrário do que normalmente ocorria até um passado recente, quando era
comum que as famílias permanecessem ligadas a uma instituição religiosa por
gerações.
Para Bitun, a origem desse
comportamento é a falta de um compromisso mútuo, tanto do fiel para com a
denominação e seus credos quanto dessa denominação para com o fiel. O
descompromisso nas relações, um traço de nosso tempo, impede que raízes de
compromisso – não só com a igreja, mas também em relação a Deus – sejam
firmadas. “Enquanto está numa determinada igreja, o indivíduo atua
intensamente; porém, não tendo mais nada que lhes interesse ali, rapidamente se
desloca para outra, sem qualquer constrangimento, em busca de uma nova aventura
da fé”, constata.
Modelo desgastado – O desprestígio do modelo
tradicional de igreja, aquele onde há uma liderança com legitimidade espiritual
perante os membros, numa relação hierárquica, já não satisfaz uma parcela cada
vez maior de crentes. “As decepções ocorrem tanto por causa de líderes quanto
de outros crentes”, aponta o pastor Valdemar Figueiredo Filho, da Igreja
Batista Central em Niterói (RJ). Para ele, um fator-chave que provoca a
multiplicação dos desigrejados é a frustração em relação a práticas e
doutrinas. “Nesses casos, geralmente quem se decepciona é quem se envolve
muito, quem participa ativamente da vida em igreja”. Com formação sociológica,
o religioso diz que o fenômeno não se restringe à esfera religiosa, já que todo
tipo de tradição tem sido questionada pela sociedade. “Há uma tendência ampla de
se confrontar as instituições de modo geral”, diz Valdemar, que é autor do
livro Liturgia da espiritualidade popular evangélica (Publit).
O jovem Pércio Faria Rios, de 18
anos, parece sintetizar esse tipo de sentimento em sua fala. Criado numa igreja
tradicional – ele é descendente de uma linhagem de crentes batistas –, Pércio
hoje só frequenta cultos esporadicamente. “Sinto-me muito melhor do lado de
fora”, admite. “Estou cansado da igreja e da religião”. A exemplo da maioria
das pessoas que pensam como ele, o rapaz não abriu mão da fé em Jesus – apenas
não quer estar ligado ao que chama de “igreja com i minúsculo”, a
institucional, que considera morta. “Reconheço o senhorio de Cristo sobre a
minha vida e sou dependente da sua graça”, afirma. E qual seria a Igreja com i
maiúsculo, em sua opinião? “O Corpo de Cristo, que continua viva, e bem viva,
no coração de cada cristão.”
Boa parte dos desigrejados encontra no território livre da internet o
espaço ideal para exposição de seus pontos de vista. É o caso de uma mulher de
42 anos que vive em Cotia (SP) e assina suas mensagens e posts com o inusitado
pseudônimo de Loba Muito Cruel. À reportagem de CRISTIANISMO HOJE, ela garante
que é uma ovelha de Jesus, mas conta que durante muito tempo foi incompreendida
e rejeitada pela igreja. “Desde os nove anos, estive dentro de uma denominação
cheia de dogmas e regras rígidas, acusadoras e extremamente castradoras”. Na
juventude, afastou-se do Evangelho, mas o pior, diz ela, veio depois. “Retornei
ao convívio dos irmãos tatuada e cheia de vícios, e ao invés de ser acolhida,
não senti receptividade alguma por parte da igreja, o que acabou me afastando
mais ainda dela. Percebi o quanto os crentes discriminam as pessoas”,
queixa-se.
Loba conta que, a partir dali,
começou uma peregrinação por várias igrejas. Não sentiu-se bem em nenhuma.
“Percebi que nenhum dos líderes vivia o que pregava. Isso foi um balde de água
fria na minha fé”, relata. Hoje, ela prefere uma expressão de fé mais informal,
e considera possível tanto a vida cristã como o engajamento no Reino de Deus
fora da igreja – “Desde que haja comunhão com outros irmãos de fé, que se
reúnam em oração e para compartilhar a Palavra, evangelizar e atuar na
comunidade” enumera.
Igreja virtual – Gente comoPércio
e Loba compartilham algo em comum, além da busca por uma espiritualidade em
moldes heterodoxos: são ativos no ambiente virtual, seja por meio de blogs ou
através de ferramentas como o twitter e outras redes sociais. É cada vez maior
a afluência de pessoas das mais diversas origens denominacionais à internet, em
busca de comunhão, instrução e edificação. O pastor Leonardo Gonçalves lidera a
Iglesia Bautista Misionera em Piura, no Peru. Mestre em teologia edita o blog
Púlpito cristão. “Quando comecei esse trabalho, passei a conhecer muitas
pessoas que estavam insatisfeitas com os rumos que o evangelicalismo brasileiro
estava tomando”, revela. “Neste processo, alguns começaram a ver o blog como
uma alternativa à Igreja, ou até mesmo como uma igreja virtual”. Leonardo lida
com esse tipo de público diariamente no blog. “Geralmente, são pessoas
extremamente ressentidas. Consideram-se vítimas de líderes abusivos e
autoritários e relatam que tiveram sua autonomia violada e a identidade quase
banida em nome de uma mentalidade de rebanho que não refletia os ideais de
Cristo.”
Outro que considera natural essa
migração em busca de uma comunhão cristã que prescinde da igreja tradicional é
o marqueteiro e teólogo presbiteriano Danilo Fernandes, editor do blog e da
newsletter Genizah Virtual. Voltado à apologética, seu trabalho tem causado
polêmicas e enfrentado resistências, inclusive de líderes eclesiásticos.
“Pessoas cansadas de suas igrejas estão buscando pregadores com boas palavras,
o que as leva à internet”. Para ele, buscar comunhão virtual em chats e outras
mídias sociais é uma tendência. “A massa está desconfiada por traumas do
passado; é gente machucada, marcada, ferida, gente que viu seus ídolos caírem”,
conclui. Ele mesmo tem atendido diversas pessoas que o procuram para desabafar
ou pedir conselhos.
Um resultado dessa busca por
comunhão no ambiente virtual é o surgimento de grupos como o Clube das Mulheres
Autênticas (CMA). Nascido de uma brincadeira entre mulheres cristãs que se
conhecem apenas virtualmente, o grupo tem como lema “Liberdade de ser quem
realmente se é”. A bacharel em direito Roberta Oliveira Lima, de 31 anos, é uma
das integrantes. Ex-membro da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte
(MG), ela afastou-se de muitas das práticas ensinadas no modelo congregacional
e se diz em busca de uma igreja “sem excessos”. Ela se define como “uma pessoa
desigrejada, mas não desviada dos princípios do Evangelho”. Segundo Roberta, o
CMA supre carências que a igreja local já não preenchia mais. “Nosso espaço tem
sido um local de refúgio, acolhimento e alegrias”, relata.
Ela garante que, até o momento, o
grupo não sentiu falta de uma figura sacerdotal. “Aquilo que nos propomos a
buscar não requer tal figura”, alega. “Pelo contrário, temos entre nós alguns
feridos da religião e abusados por figuras sacerdotais clássicas. O nosso
objetivo maior é compartilhar a vida e o Evangelho que permeia todos os
centímetros de nossa existência”, descreve, ressaltando que, para isso, não é
necessário adotar uma postura proselitista. “Mas nosso objetivo jamais será o
de substituir a igreja local”, enfatiza.
“Galho seco” – “Falta de
acolhimento pela comunidade, o desgaste provocado pelo estilo centralizador e
carismático de liderança e frustração com as ênfases doutrinárias contribuem
para esse fenômeno”, concorda o pastor Alderi Matos, professor de teologia
histórica no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo.
Mas ele destaca outro fator que empurra as pessoas pela porta de saída dos
templos: “É quando uma igreja e seus líderes se envolvem em escândalos morais e
outros”.
A paraibana C., de 37 anos, é um
exemplo de gente que fez esse penoso percurso. Ela relata uma história de
abusos e falta de princípios bíblicos na congregação presbiteriana de que foi
membro por mais de quinze anos, culminando com um caso de violência doméstica
de que foi vítima – sendo que o agressor, seu marido, era pastor. “Havia
perdido completamente a alegria de viver, ao me deparar com uma realidade bem
distante daquela que o Evangelho propõe como projeto para a vida”. C. fala que
conviveu em um ambiente religioso adoecido pela ausência do amor de Cristo
entre as pessoas: “Contendas sem fim, maledicência impiedosa e muitos litígios
entre pessoas que se diziam irmãs”.
Este ano, C. pediu o divórcio do
marido e tem frequentado um grupo alternativo de cristãos. “Rompi com a
religião. Hoje, liberta disso, tudo o que eu desejo é Jesus, é viver em leveza
e simplicidade a alegria das boas novas do Evangelho”. Ela explica que, nesse
grupo, encontrou pessoas que vivenciaram experiências igualmente traumáticas
com a religião e chegaram com muitas dores de alma, precisando ser acolhidas e
amadas. “Temos nos ajudado e temos sido restaurados pouco a pouco. No âmbito do
grupo, um ambiente de confiança foi formado, de modo que compartilhar é algo
que acontece naturalmente e com segurança.”
“As pessoas anseiam por ver
integridade na liderança. Quando o discurso não casa com a prática, o indivíduo
reconhece a hipocrisia e se afasta”, avalia o bispo primaz da Aliança das
Igrejas Cristãs Nova Vida (ICNV), Walter McAlister. Para ele, se os modelos
falidos de igrejas que não buscam o senso de comunhão e discipulado – como os
que denuncia em seu livro O fim de uma era (Anno Domini) – não mudarem, o êxodo
dos decepcionados vai aumentar. Apesar de compreender os motivos que levam as
pessoas a abandonarem a experiência congregacional, o bispo é enfático: “Nossa
identidade cristã depende da coletividade e, portanto, de um compromisso com
uma família de fé. Sem isso, a pessoa não cresce nas virtudes cristãs e deixa
de viver verdadeiramente a sua fé. Como um galho solto, seca e morre”.
“O fenômeno dos desigrejados é
péssimo. Somos um corpo, nunca vi orelhas andando sozinhas por ai”, diz Paulo
Romeiro. O pastor Alderi, que também é historiador, recorre à tradição cristã
para defender a importância da igreja na vida cristã. “Da maneira como a fé
cristã é descrita no Novo Testamento, ela apresenta uma feição essencialmente
coletiva, comunitária. A lealdade denominacional é importante para os
indivíduos e para as igrejas. Quem não tem laços firmes com um grupo de irmãos
provavelmente também terá a mesma dificuldade em relação a Deus”, sentencia.
Sinais do Reino – Dentro dessa
linha de pensamento, é possível até mesmo encontrar quem fez uma jornada às
avessas, ou seja, da informalidade religiosa para o pertencimento
denominacional. Responsável pelo blog Lion of Zion, Marco Antônio da Silva, de
31 anos, é membro da Comunidade da Aliança, ligada à Igreja Presbiteriana do
Brasil, em Recife (PE). Ele afirma que redescobriu sua fé na igreja
institucional. “Para alguns militantes virtuais mais radicais, isso seria uma
heresia, mas tenho uma família com necessidades que uma igreja local pode
suprir – e a congregação da qual faço parte supre essa lacuna muito bem”,
afirma.
“Existe desgaste, autoritarismo e
inoperância em todos os lugares onde o homem está”, reconhece o pastor e
missionário Nelson Bomilcar. Ele prepara um livro sobre o tema, baseado nas
próprias observações do segmento evangélico a partir de suas andanças pelo
país. “Podemos ficar cansados e desencorajados, mas temos que perseverar e
continuar amando e servindo a Igreja pela qual Jesus morreu e ressuscitou”.
Como músico e integrante do Instituto Ser Adorador, Bomilcar constantemente
percorre congregações das mais variadas confissões denominacionais – além de
ser ligado a seis igrejas locais, ele congrega na Igreja Batista da Água
Branca, em São Paulo. “Continuo acreditando na Igreja do Senhor. Estou na
Igreja porque fui colocado nela pelo Espírito Santo. É possível viver o
Evangelho na comunidade, apesar de todas as suas ambiguidades, para balizarmos
aqui e ali sinais do Reino de Deus. Tenho sido testemunha disso”.
Em cristianismo hoje
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