Ler & Pensar IV
Até o final da semana postaremos partes do texto Meu pentecostalismo revisitado - Elienai Cabral
Junior, um texto apresentado a mim por um amigo e camarada que me fez pensar, sobre o modo como recebo o evangelho de Cristo em minha vida. Mas aviso aprecie com moderação (kkkkk...) Leia, medite e desfrute.
Meu pentecostalismo revisitado
Por: Elienai Cabral Júnior
Sou a terceira geração de
pastores em minha família. Meu avô materno, hoje jubilado, é pastor da
Assembléia de Deus no interior do Rio de Janeiro. Meu avô paterno, já falecido,
pregou sua última mensagem (“A que vieste?”) na Assembléia de Deus em Curitiba,
onde encerrou sua trajetória ministerial, a três dias de sua partida para o
Senhor. Ambos marcaram seus ministérios com uma pregação consistente, criativa
e antecedida de pesquisa e elaboração textual. Do meu avô materno, José Carlos
Lessa, carrego a impressão de uma pregação professoral e cartesiana. Do meu avô
paterno, Osmar Cabral, sua eloqüência e paixão, que o levaram aos ‘pulinhos’
empolgados, foram traços que não o impediram de pregar com gravidade e
conteúdo.
Meu pai é pastor no Distrito
Federal. Não o conheci em outro ofício senão o do púlpito. Quando nasci, meu
pai já viajava o Brasil pregando e promovendo as famosas ‘cruzadas
evangelísticas’, “Cruzadas Boas Novas”, protagonizadas pelo Evangelista
Bernardo Johnson Jr. À frente da geração anterior, tanto quanto da sua própria,
cursou teologia. Escreveu livros, e ainda o faz. Tornou-se uma referência da
teologia assembleiana no Brasil. Conseguiu reunir a eloqüência, elaboração
intelectual e a criatividade em sua produção pessoal. Seu escritório é uma
escandalosa biblioteca.
Minha mãe, não poderia deixar de
incluir sua presença influente em minha história de pentecostalismo, imprimiu
em mim a obsessão pela coerência, um criticismo agudo e insistente, o gosto
pela língua bem falada e escrita e uma leitura da fé sem os moldes da teologia
sistemática.
Curiosamente, a presença dos
livros e a pregação antecedida de pesquisa e elaboração foram parceiras das
experiências do tipo pentecostal. Este ambiente de reflexão e espírito
inventivo, inusitado para o pentecostalismo, tão intuitivo e passional, não
prescindiu das mais legítimas manifestações carismáticas. Cresci ao som de
línguas estranhas, promessas derramadas em nossa família por profecias do tipo
“Eu, o Senhor teu Deus, falo contigo...”, curas físicas, milagres financeiros,
cultos graves e intensos, de tão gloriosa presença do Espírito Santo. Como
esquecer o dia em que depois de comer pão coberto com banha de porco e açúcar,
por absoluta falta de alternativas, fomos surpreendidos por um amigo da família
carregando compras para dentro de casa, porque Deus falara ao seu coração? Como
perder a memória da reunião de mulheres na casa de alguém, em que fui batizado
com o Espírito Santo, falando em línguas pela primeira vez aos nove anos de
idade? Carrego o legado pentecostal nas minhas lembranças de como Deus
tornou-se conhecido para mim.
Entrei em contato com o
pensamento teológico organizado através dos diversos seminários, que duravam
uma semana, ministrados pelo meu pai em seu Ministério Cristocêntrico: As
Setenta Semanas de Daniel, O Apocalipse, Carta aos Romanos, A Juventude Cristã
e o Sexo. O Batismo com o Espírito Santo e os Dons Espirituais e outras
dezenas. Ajudava na organização, inscrições, distribuição de apostilas,
certificados. Mas o que gostava mesmo era de sentar entre os participantes,
caneta na mão, apostila, Bíblia e uma mente adolescente deslumbrada com a
sabedoria do pai e a grandeza de tudo o que ouvia (‘Como pode caber tanta coisa
na cabeça de um homem só?!’)
Junto a tudo isso, o ardor
evangelístico. Ninguém pedia, mas aos sete e oito anos de idade distribuía
folhetos na rua em frente ao prédio onde morávamos em São Vicente, litoral
paulista. Um monte de gente passava por ali em certo dia da semana, em direção
à feira livre da rua vizinha. Carrego uma memória preciosa do dia em que
“ganhei a minha primeira alma para Jesus!” Foi o que gritei quando entrei em
casa exigindo que minha mãe me desse uma daqueles livros que se dava para um
recém convertido. Do livro não esqueço, nem do título e do autor, De Coração
para Coração de Alcebíades Vasconcelos. Desci a escadaria correndo, livro na
mão, coração quase saindo pela boca, lágrimas nos olhos. Entreguei o livro e o
endereço da igreja na mão do rapaz. Não me pergunte por ele. Nunca mais o vi.
Mas ali, de uma forma linda, Deus forjava em um menino o ímpeto pastoral.
Tive um amigo do qual não consigo
esquecer. Natanael Rinaldi, um homem apaixonado por vidas e evangelismo.
Imagino que ele deveria ter na época mais de quarenta anos de idade. Três vezes
na semana, terça, quinta e domingo, à tarde, buscava-me no mesmo endereço que
acabei de relatar. Íamos para cultos ao ar livre, hospitais, orfanatos, casas,
ruelas. Bíblia de baixo do braço, um maço de folhetos na mão e os olhos
dilatados pelo deslumbre de ser um evangelista. A primeira vez de um pregador
ninguém esquece. Meu querido amigo avisou-me que eu “daria uma ‘palavra” no
culto ao ar livre. Não lembro do que falei. Mas já tinha aprendido com meu pai
a andar sempre preparado para uma oportunidade. O que não consigo esquecer é a
minha alegria ao dar a notícia ao meu pai de que tinha pregado pela primeira
vez. Em seguida, tornei-me um “pregador mirim”. Aonde meu pai fosse pregar,
arrumava um jeitinho de “dar uma palavrinha”. A imagem da igreja “em chamas”
encantou-me. A vozinha esganiçada de menino vociferava jargões inflamados. Dava-me
três minutos e o “fogo” estava atiçado. Cheguei a acreditar que eu fosse
realmente muito bom. Mas bom mesmo era aquele povo apaixonado por qualquer
expressão mínima de fé.
Subi morros em Niterói, cidade do
Estado do Rio de Janeiro. Vi gente possessa por demônios bolar no chão
poeirento das clareiras entre os barracos de favelas. Gente opressa por
demônios (e por gente, hoje eu sei). Lembro de, aos nove ou dez anos, ter uma
mulher diante de mim, depois de rolar de dentro do seu barraco até o centro da
roda do culto onde estávamos cantando e pregando, estrebuchando aos berros. Com
medo, mas devidamente treinado por tudo o que já tinha visto, baixei com as
mãozinhas sobre a sua cabeça e, junto com todos os outros, berrei a ordem de
expulsão dos espíritos que ali estavam.
Em minha adolescência, assisti a
muitas transformações do ambiente pentecostal. Muitas tradições começaram a
ruir, principalmente as estéticas. As mulheres agradeceram. Roupas, cabelos e
adereços sofreram as mudanças inexoráveis do mundo moderno. Apesar de ainda
hoje encontrarmos guetos de resistência.
A estética do culto também mudou,
por pressão de uma juventude ansiosa por se expressar. Igrejas pentecostais
novas surgiram. Empolguei-me quando descobri uma tal de Assembléia de Deus
Betesda em Fortaleza, Ceará. Tirou-me o fôlego, aos quinze anos, depois de um
culto pontuado por uma exposição densa da Bíblia e muito quebrantamento,
acompanhar os jovens da igreja à beira-mar, onde tomamos sorvete, cantamos
louvores em roda na areia da praia e evangelizamos todos os que pudemos.
Redescobri o prazer do culto, aprendi a ler com paixão a Bíblia, a orar com
freqüência com jovens vindos das drogas e de uma sexualidade pervertida para o
Senhor Jesus. “Dancei no espírito”. Freqüentei acampamentos. Participei de
“louvorzões”. Escandalizei os mais velhos. Mas continuei junto com tantos
outros dentro da igreja. Um pentecostalismo já mudado emergiu em minha geração.
Hoje, sou pastor de uma dessas
tantas ‘Betesdas’ espalhadas pelo Brasil. Além de cursar Teologia no mesmo
seminário que meu pai (apesar de minha passagem ser marcada por algumas
convulsões de comportamento e teologia), formei-me em Filosofia. Mantive o
gosto pela leitura que aprendi em casa. Bebo freqüentemente das memórias
deixadas por meus avós e pais. Mas pastoreio uma igreja distinta da igreja que
eles pastorearam. Meu mundo mudou assustadoramente. E o pentecostalismo também.
Convivo com irmãos que
experimentaram o que eu também experimentei no passado. Muitos vivem vergados
de culpa. Tentam explicar porque não vivenciamos o fervor de outrora. Porque os
dons não se mostram como antes. Nossos cultos tornaram-se diferentes em todos
os sentidos. No entanto, não consigo sentir-me nem culpado e nem participante
de algo inferior. Apenas vivemos um tempo distinto. O pentecostalismo sofreu
mudanças. Alguns valores preciosos se transviaram em vícios vexatórios para a
igreja. Mas algumas transformações simplesmente seguiram o curso natural da
vida. Diante disso, sinto necessidade de pensar os tropeços pentecostais, além
das boas memórias já visitadas. Como também de indicar um caminho possível e
necessário para revisitar nosso pentecostalismo. (Continua...)
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