Ler & Pensar VII




Meu pentecostalismo revisitado - Elienai Cabral Junior (Continuação)

Para promovê-lo à elite dos contemplados pelo poder carecemos de uma indicação indiscutível. O que novamente indica que o falar em línguas alça o indivíduo à categoria dos que podem em detrimento dos que não podem. O critério de conferir cargos eclesiásticos ao que fala em línguas aprofunda a relação línguas-poder. E o faz de forma mais grosseira, porque agora quem fala em línguas é promovido na hierarquia de poder. Diácono, presbítero, evangelista e pastor, os homens do mando têm que carregar a chancela das línguas estranhas.

Lembro de falar em línguas pela primeira vez aos nove anos. O prodígio inexplicavelmente não se repetiu mais pelos próximos anos. Aos quinze, sofria por não falar em línguas. Entenda o que se passava em minha mente adolescente. Sonhava com o ministério pastoral. Mas não falar em línguas esbarrava meus planos. Cada apelo ao final do culto deixava minhas mãos molhadas, o coração em taquicardia. Ia à frente buscar novamente o batismo, mas voltava para o meu lugar decepcionado. Resolvi fazer um jejum de vinte e quatro horas, às vésperas de um final de semana com cultos de avivamento em nossa igreja. Um pastor norte americano seria o pregador. Na sexta-feira lá estava eu encerrando o meu jejum no culto. Ouvi a pregação com a certeza de que daquele dia não passava. Minha sorte mudaria. No apelo lá estava eu em uma das duas filas formadas nos corredores da igreja, percorrida pelo pregador que, um a um, impôs as mãos e rogou a Jesus o Batismo com o Espírito Santo. Minha vez chegou. Orou, orou e nada. Passou para o próximo e deixou-me arrasado. Desconfiei de meu valor. De minha vocação. Do meu sonho de um dia pastorear. Voltei para o banco. Lá estavam meus colegas ansiosos pela minha volta. A pergunta: e aí? A resposta envergonhada: não deu! Uma irmã do lado, com uma cara de revolta, olhou para mim como que me fuzilando: Como é que pode? Nem depois de jejuar você foi batizado? Ah se eu pudesse sair correndo para bem longe dali. Tempos depois voltei a falar em línguas. Não consigo me lembrar como aconteceu. Simplesmente apagou-se de minha memória. Apenas sei que um dia me dei conta de que falava em línguas estranhas. E o faço até hoje com gratidão a Deus.

Com muita freqüência ouço desabafo de pessoas aflitas dentro da igreja. Sentem-se excluídas por Deus da benção do Espírito Santo. São crentes leais. Homens e mulheres íntegros e apaixonados por Deus. Ouço de homens que morreram sem realizarem o sonho do exercício ministerial por também não terem sido contemplados pelo Batismo.

Esta perspectiva cria algumas situações no mínimo ridículas. Pessoas que falam qualquer coisa que se pareça com o que ouvem de outros. Assovios. Grunhidos. Glórias a Deus repetidos freneticamente até que se tornem impronunciáveis. – Fala “glória” bem rápido, irmão! Glu, glu, glu. Outros são ensinados a repetir o que estão ouvindo. Faz-se qualquer negócio para estar entre os abençoados. Para ser contado entre as mãos que se levantam e fornecem os números alvissareiros do pregador.

Há os pregadores que descobrem fórmulas de como levar o povo ao Batismo. Em um dia desses, um amigo confidenciou-me seu segredo avivalista: - Conto muitos testemunhos e depois ensino às pessoas que peçam uma vez só e depois apenas louvem e glorifiquem a Deus. É tiro certo! Perguntei-lhe: mas e o Espírito Santo? E o nosso relacionamento pessoal com Jesus? Se não fizer tudo como no figurino, Jesus não faz? Isso parece mais um abracadabra pentecostal do que uma visitação prodigiosa do Espírito Santo de Deus!

É preciso que se diga que por mais que funcione, a doutrina pentecostal do da evidência inicial do Batismo com o Espírito Santo é oca de conteúdo bíblico. Nos chamados quatro pentecostes de Atos (2.1-13; 8.4-25; 9.24-48; 19.1-6), nem todos registram a glossolalia e, exceto o do Dia de Pentecostes em Jerusalém, o sinal das línguas estranhas não é a única evidência. Luca lista também as profecias, adoração e alegria. Entre os samaritanos nada diz. Apenas afirma que receberam o Espírito (At 8.17). As línguas são um sinal freqüente, mas não um sinal imprescindível.

Nas cartas, onde se ensina sobre os dons espirituais, nada se fala sobre o Batismo com o Espírito Santo como evidenciado necessária e inicialmente pelo falar em línguas. Ao contrário, as línguas são listadas entre outros dons vários, cuja riqueza está na diversidade. Nem todos fazem as mesmas coisas nem experimentam os mesmos dons. É a vitória do imponderável Espírito Santo sobre a mesmice dominadora das práticas de poder humanas(1Co 12.28-31).

Não vemos os apóstolos recomendando às igrejas a busca do Batismo com o Espírito Santo. Ensinam a busca dos dons em sua diversidade. Falam a essas igrejas partindo do pressuposto de que já experimentaram a segunda benção. Mais ainda, em Atos, Lucas não descreve nenhum caso de batismo com o Espírito individual. Salvo o registro de que Paulo, após a oração de Ananias, foi curado de sua enfermidade e ficou cheio do Espírito. Todos os demais registros são de um fenômeno coletivo. O Espírito foi derramado sobre todos os que estavam no cenáculo em Jerusalém. Entre os samaritanos, Pedro e João impôs as mãos e eles receberam o Espírito Santo. Na casa de Cornélio, o Espírito desceu sobre todos os que ouviam a pregação de Pedro. Entre os discípulos efésios, Paulo os batizou nas águas e todos foram cheios do Espírito.
A experiência do Batismo com o Espírito Santo não é solipsista. Não se sabe de alguns do culto que não provaram. É comunitária, porque é uma experiência de relacionalidade e não de exclusividade. Os dons do Espírito, curiosamente, só se justificam na comunhão. Paulo não deixa dúvidas sobre isto na tríade de capítulos, 12, 13 e 14, da Primeira Carta aos Coríntios, onde ensina sobre o fervor inteligente dos dons no culto. 12.7: “A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum.” 14.2-4 e 12: “Pois quem fala em uma língua não fala aos homens, mas a Deus. De fato, ninguém o entende; em espírito fala mistérios. Mas quem profetiza o faz para edificação, encorajamento e consolação dos homens. Quem fala em língua a si mesmo se edifica, mas quem profetiza edifica a igreja. Assim acontece com vocês. Visto que estão ansiosos por terem dons espirituais, procurem crescer naqueles que trazem a edificação para a igreja.”

Não há alguns batizados em detrimento de outros na igreja local, no ajuntamento dos irmãos. Quando um é, todos são. Esta é a lógica da Bíblia. Quantos foram batizados? Esta é a pergunta recorrente no ambiente pentecostal. Um equívoco. A pergunta bíblica não é esta, mas: A igreja já foi batizada com Espírito Santo? Isto significaria dizer que qualquer um que dela fizer parte torna-se participante da segunda benção, que certamente será por ele experimentada com intensidade em algum momento e partir de algum dom espiritual.

Finalmente, o dom de línguas, ao contrário do que somos levados a crer na ambiência pentecostal, não é um sinal de poder, prestígio e orgulho. É um sinal de fraqueza, humildade e esvaziamento. Falamos línguas que sequer conseguimos entender(1Co 14.14). O sinal mais freqüente do Batismo com o Espírito Santo é o da fala de algo que nós mesmos não conseguimos elaborar. Isto que recebemos de Deus, por sua graça, a salvação em Cristo é algo tão superior a nós, tão acima de nossos méritos e habilidades que sequer conseguimos fazer caber em nossa linguagem. Outras línguas são as que falam com satisfação, mas apenas para o íntimo de quem fala. Aquele que fala em outras línguas é lembrado e torna-se um lembrete de Deus de que é limitado. De que o Reino do qual participa não foi conquistado por suas habilidades e, portanto, quem quer que dele participe precisará depender do Espírito Santo de Deus, o Outro Consolador que nos guiará em todas as coisas.

O dom de línguas é um lembrete com doce vergonha da nossa incapacidade de fazer coisas. Precisamos de Deus. Precisamos uns dos outros. A descrição da igreja pentecostal em Atos não é de uma igreja potente e imponente. Mas de uma comunidade de irmãos que se amavam concretamente. At 2.44-47: “Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos.” A irracionalidade do dom de línguas é percebida com cuidado pelo Apóstolo Paulo. Sua advertência nos leva a exercer este dom de fora para dentro. Falando consigo mesmo. Como que se convencendo pelo Espírito de sua inadequação diante da grandeza da obra de Deus em nós. Fale consigo mesmo e converta-se ao irmão. Fale consigo mesmo e torne-se mais permeável ao próximo. Um homem melhor. Uma mulher melhor. Gente enternecida diante de Deus e do mundo.
No dom de línguas somos levados a um esvaziamento de poder. Nosso poder caído, de gente pecadora. O poder de dominação do outro e perpetuação de si mesmo é substituído por um outro poder. Poder do Espírito. Bem maior do que a nossa vã linguagem pode pronunciar. O mesmo que veio sobre Jesus e o capacitou a encarnar o amor de Deus entre os homens, mesmo sem ter falado em outras línguas. O mesmo poder que capacitou Jesus a fragilizar-se como pessoa até a morte de cruz(Fl 2.5-8). A enfrentar o poder das Trevas no palco do Calvário. A vencer o poder maligno não com mais poder, mas com outro poder. O poder do amor que se enfraquece para salvar.

Mais do que nunca, nosso pentecostalismo precisa redescobrir sua busca de poder. É inadiável uma renúncia deste poder violento de dominação religiosa. Não somos chamados por Deus para abalar nossas cidades com o poder do Espírito. Nossa gente já está abalada demais pela violência, pelos maus governantes, pelo mercado implacável, pela competitividade desumanizante, pela miséria social para sofrer mais abalos.

Nossa vocação pentecostal precisa seguir os passos do Mestre. Cheio do Espírito(Lc 3.21-22; 4.1-13), antes de qualquer tarefa, venceu a tentação do Diabo de viver por um outro poder que não o que recebera no Jordão sob a fala amorosa do Pai: “Este é o meu filho amado em quem tenho prazer.” Se no Jordão, após o batismo de João, Jesus foi batizado no Espírito Santo.

No deserto, solitário e suscetível, foi batizado pelo Espírito em nossa humanidade. Na oferta oportuna do Diabo, Jesus renunciou o poder de não ser gente, de embrutecer diante da mais frágil manifestação de fraqueza humana, a fome: transforma esta pedra em pão. Reduzir um tempo de intimidade com Deus e com a sua humanidade à magia de atalho para a saciedade seria ridicularizar tudo o que Deus já havia ofertado. Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que vem da boca de Deus.
Recusou-se ao poder de conquistar o mundo em fama e glória, de ter uma imagem brilhante de poder: tudo isto de darei se prostrado me adorares. O poder que veio exercer não atrairia o mundo pela glória e fama, mas pela graciosa entrega de si mesmo em amor. “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”(Jo 12.23-33).

Deu as costas para o poder de ser uma exceção de segurança e felicidade em um mundo inseguro e infeliz: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Sua resposta tem que ser a nossa: “não colocarás o Senhor teu Deus à prova”. Uma gente cheia do Espírito não carece de espetáculos narcíseos para saber quem é. Já sabemos quem somos. O Espírito já nos foi dado(Lc 11.13). Qualquer outra prova é uma exigência idólatra e tola.
Alguém me perguntou recentemente: qual é o seu pentecostalismo?
É este.

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