Ler & Pensar VI
Meu pentecostalismo revisitado - Elienai Cabral
Junior (Continuação)
Até aqui me referi apenas à
herança bendita do pentecostalismo. Preciso também me lembrar do que carrego
com lamento, ainda de minha infância.
Não demorou muito para descobrir
nas aflições de meu pai o que bem depois compreendi com mais precisão. O mundo
pentecostal estava profundamente comprometido com uma prática de poder
perversa. Perdi a conta das vezes em que meu pai aguardou a chance de pastorear
uma igreja no vasto Brasil assembleiano.
Recordo-me de alguns detalhes que
faziam parte das muitas histórias de decepção. O povo da igreja, admirador de
meu pai, tentava se articular de muitas formas contra os movimentos invisíveis
dos bastidores políticos. Meu pai ouvia promessas de que tudo seria justo e que
ele seria lembrado. No entanto, alguém sempre, por meios questionáveis,
conseguia descartá-lo a despeito da vontade popular e impor outro que
compusesse interesses políticos maiores. Foram muitas as vezes que vi meu pai
chorar, minha mãe consolá-lo e ele, teimosamente, acordar no dia seguinte com a
mesma capacidade de continuar sonhando e acreditando em um dia em que seria
reconhecido o seu valor.
Também ouvi as tantas conversas
sobre os tantos “esquemas” para que alguém se perpetuasse à frente de uma
igreja, de uma supervisão, de uma convenção, ou mesmo da Convenção Geral das
Assembléias de Deus (CGADB). Histórias como a de um porteiro que recebeu
credencial de pastor de última hora para ajudar a eleger como presidente da
convenção um certo líder, ouvi com uma freqüência vergonhosa. Coisas como estas
foram ensinando ao meu coração, à minha inconsciência de então, o que hoje
discirno com lúcida consciência, que o poder pentecostal confundiu-se
rapidamente com um outro poder, articulado por gente que aprendeu a amar títulos,
mando e prestígio humano.
Minha primeira tentativa de
explicação é que o poder pentecostal comportou-se como uma habilitação para o
desempenho de tarefas tão somente. Gente com poder faz mais e melhor. A
conclusão óbvia foi que apenas os que recebessem tal virtude, o Batismo com o
Espírito Santo, sinalizado primeira e necessariamente com a fala prodigiosa de
línguas estranhas, teriam legitimidade para o exercício ministerial. Receber
“poder” transformou-se em ter “poder”, legitimidade de mando e prestígio diante
dos demais. Uma vez falando em línguas, o próximo passo era ser diácono. Vi
tanto crente devoto e talentoso amargar o desprestígio diante da igreja! Vi
tantos irmãos sinceros impedidos de desenvolverem ministérios na igreja porque
não falavam em línguas! Também vi tanta gente de conduta questionável exercendo
o mando apenas porque um dia falou em línguas estranhas! As disputas de poder,
busca de títulos, hierarquização dos ministérios são características fortes e
inegáveis dos ambientes pentecostais clássicos.
Mas, uma outra característica,
esta mais recente e escandalosa, é a do envolvimento de líderes pentecostais
com as disputas políticas seculares. Desde a Constituinte de 1988, nós
pentecostais não conseguimos ficar de fora da lista de nenhum grande escândalo
da vida pública. Negociações indecentes com forças políticas têm sido
freqüentes na recente história pentecostal. Contam-se como piadas de crentes as
participações de certos líderes políticos em cultos evangélicos, que não se
intimidam em saudar os crentes com “a paz do Senhor” e proferir os jargões
devidamente ensinados por seus assessores. Novamente, aqueles que foram
ensinados a buscar o poder do Espírito, com estranha facilidade passaram a
buscar o poder político.
Sofremos a mesma tentação de
Jesus no deserto, “tudo isso te darei se prostrado me adorares”. O Cristo,
cheio do Espírito no batismo do Jordão, prestes a percorrer o mundo com o
evangelho, recusou-se a confundir o poder pelo qual veio com o poder político
oferecido pelo Diabo. Jesus venceu, “somente a Deus adorarás, somente a Ele
prestarás culto”. Nós pentecostais prostramo-nos diante do Maligno ao amarmos e
promovermos este outro poder. Estamos no Congresso Nacional há duas décadas,
mas não mais temos como emblema a integridade moral. Hoje, a bancada evangélica
é vista como um dos grupos mais corruptos no trato com a coisa pública.
Prostramo-nos também e de vergonha diante do povo brasileiro.
Outra leitura que faço é a da
cria indesejada do pentecostalismo, o neopentecostalismo. Aqui me arrisco de
novo em uma explicação. O neo-pentecostalismo nasceu do adiamento pentecostal
da reflexão. Digo adiamento, porque não questiono a ausência de vocação para
refletir de qualquer novo fenômeno religioso. A história ratifica o fato. Mas a
dificuldade de se reinventar como movimento, a rigidez postergada da irreflexão
ocasionou uma fissura do tamanho do neopentecostalismo.
As manifestações derivadas do
neopentecostalismo cada vez mais bizarras e cada vez se substituindo mais
rapidamente por outras, marca da lógica de mercado, foram recebidas com
fluência no ambiente pentecostal clássico. Ávidos pelo poder em sua expressão
mais performática, inconformados com a perda do fenômeno pentecostal das
primeiras décadas, nós pentecostais tornamo-nos presas fáceis para a chamada
teologia da prosperidade e movimentos da fé de origem norte-americana.
Rapidamente nosso pentecostalismo migrou do fervor missionário para o êxtase
narcisista. Lotamos auditórios para assistirmos o espetáculo de ilusionistas
religiosos derrubando no chão crentes sugestionáveis. Escancaramos nossas
portas para ouvir com ingenuidade pregadores influenciados pelo neognosticismo
originado na Ciência Cristã, também exportado pela cultura evangélica
norte-americana. Alguém já disse que os alemães inventaram a teologia, os
americanos estragaram e nós consumimos!
Diante disso, proponho uma
revisão de nossa pentecostalidade. Precisamos aprofundar o sentido de poder
quando falamos do poder do Espírito. Enquanto movimento, o pentecostalismo não
precisou fazer algumas reflexões. O fenômeno freqüentemente prescinde de
reflexão. Mas o desenrolar do tempo encerrou o fenômeno, o que também é
constituinte de um movimento, assim como foi no primeiro século da igreja
cristã. O mundo mudou, nossas práticas mais antigas tornaram-se inócuas. Nossa
linguagem expirou sua comunicação. Nossos cultos não reproduzem com
naturalidade as mesmas experiências do passado. Toda reedição forçosa de um
fenômeno espiritual torna-se artificial, efêmera e tende a descambar em
manipulação inescrupulosa.
Proponho uma arqueologia de nossa
alma pentecostal. Sem medo de descobrir o que hoje pode ser apenas um fóssil
esquecido de nossas origens. Desconfio que “o poder pentecostal” é este fóssil
de nossa espiritualidade a ser reencontrado. Acredito que o “elo perdido” de
nossa pentecostalidade é a prática deste outro poder fossilizado por nossas
buscas de expressão social e política. Cabe-nos parar. Pensar e converter-nos
ao primeiro amor. “Volte para o lugar onde caístes”.
Como emblema do nosso
pentecostalismo, o falar em línguas pode ser o ícone deste movimento aqui
revisitado. Façamos do falar em línguas nosso ponto simbólico de reflexão e
construção deste novo pentecostalismo. Dentro do discurso tradicional da
doutrina pentecostal, o falar em línguas estranhas, a glossolalia de Atos 2, é
o primeiro sinal necessário e evidência do Batismo com o Espírito Santo. As
línguas estranhas são o fenômeno da segunda benção. Esta por sua vez, distinta
da salvação, sujeita e posterior a ela, é o componente carismático de Deus para
o cumprimento da tarefa missionária da igreja (At 1.8). A conclusão imediata da
doutrina pentecostal é que ninguém está plenamente apto para o exercício
ministerial sem o batismo com o Espírito Santo e este evidenciado pelo falar em
línguas. Como também, o sinal de línguas, freqüentemente diferenciado pelos
manuais pentecostais do dom de línguas, é a porta de entrada dos dons
espirituais listados por Paulo(1Co 12).
A relação óbvia das línguas com o poder precisa ser
enxergada na prática pentecostal. Quem fala em línguas tem poder. Os que ousam
discutir a relação necessária do Batismo com as línguas ouve a questão sempre:
mas como saber se alguém foi ou não batizado sem as línguas? Para conferir o
estatuto de competência espiritual ao então batizado com o Espírito Santo
precisamos de uma evidência forte.
Continua...
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